A foto, tão linda,me fez lembrar do que escrevi no famigerado "Avesso". Depois que eles se foram, não escrevi mais. Aí está um pouco dessa auto ficção:
"Feliz se sentira naquela noite, noite de lua cheia e céu estrelado; noite que se contorcia de tanta beleza e era beleza tanta que a gente da casa falava baixo, macio; falava com a sabedoria que vinha das entranhas da terra;do calor subterrâneo das raízes das árvores; do mistério sombreante da serra, agora adormecida. Naquela noite todos saíram de casa, a lua convidara. O luar se insinuava pelas janelas, pelos traçados enlourados, encantantes desenhados nas tábuas do piso; a lua, naquela noite, os queria cúmplices.E assim foram todos passear na estrada, beirar a serra.
Na frente, puxando a tropa, iam mãe e pai enlaçados naquele abraço eterno. De vez e outra, olhavam para trás, cuidavam para que nenhuma de suas ovelhas se desgarrasse.E havia em seus olhares orgulho, prazer enorme de tantos filhos e, quando o menorzinho se mostrou cansado, pai o colocou em seus ombros fazendo com que a criança se agigantasse na continuidade daquele que era para todos herói, homem com H. Logo em seguida, vinham as meninas, de braços dados, em risinhos secretos, já confidenciando com a lua esperanças de amores futuros...mulherzinhas.
Maria buscava a companhia do primogênito.Esse estudava na capital,porém estava de férias na fazenda.Trazia os cabelos longos e a barba por fazer, os olhos fundos, boêmios e uma magreza mítica; trazia também, e era por que Maria ardia, um saber às avessas, um conhecimento de si, um lirismo convulso traduzido em poemas. Maria tomou-lhe a mão e foi gentilmente, sorrateiramente, forçando-o a distanciar dos demais. E assim envolvidos pelos cicios, pelo cintilar dos vaga-lumes, pelo luar..."Mas não foge o covarde, apenas se submete. Deixa-se ser engolido antes mascado como chiclete,... Até os intestinos, onde se faz numa excrescência... Surpreende o frio do amanhecer, do lusco-fusco. Covarde. Da cama até a porta rasteja o molusco”. Maria não decifrava as palavras, mas pressentia o significado, prenunciava a epifania, comungava a substância.Maria, em sobressaltos, sonhava...Um dia, falaria assim, revelar-se-ia assim...Era bonito, doía fundo...
E por último, vindo em grande algazarra, a criançada que corria, levantava poeira, aprisionava vaga-lumes, Bené os liderava
Ao pé da montanha, oráculo sombrio, acenderam uma fogueira e rodearam-na como se fossem uma primitiva tribo.Pai e mãe relembraram o passado; as mocinhas, curiosas, ouviram a história do primeiro encontro; inibidas, do primeiro beijo.O primogênito se isolou buscando rimas nas estrelas.Bené desenhava na escuridão, o tição volvia criando imagens fugazes. O endiabrado corria atrás dos pequenos que viam suas sombras se confundirem com as da criação que indiferente pastava ao redor. Maria ali estava sendo duas.Maria era assim: havia uma que existia e outra que se ausentava para sentir.
Então pai, já preocupado com o desassossego dos pequenos, abandonou românticas histórias e começou a contar assombrados causos.E começou assim, devagarinho como quem não quer nada, desconsiderando a esperada introdução: era uma vez.O que queria pai era que as crianças fossem laçadas pela saga, não pelo o de costume:
- E era assim Papai Américo, um homem diferente, diferente para os tempos de agora, não para os de outrora - disse olhando as chamas como se delas lhe viessem as lembranças. - Naquele tempo havia gente assim, gente mancomunada com os que já foram, com os que são almas de iluminação ou com os que são almas penadas, tratadas de assombração.
E os pequenos como que hipnotizados, vieram buscando assento, aconchego. A noite enluarada exigia presença de estranhas entidades e as crianças sentem primeiro sua proximidade.
-Papai Américo tinha tutano, mando nos de outras esferas. Tanta era sua força que nos idos anos do outro século, benzeu seu próprio filho picado de cobra, cobra venenosa, uma cascavel.Taí sua mãe pra provar que a cria se salvou, a cria era o pai dela. Conta-se também que, um dia Papai Américo se desentendeu com um comprador de gado. Mau negócio, levou manta. Acabrunhado, fez uma reza brava e quando o comprador ia levar o gado... Na frente da porteira da saída, Papai Américo deu uns pulinhos xistosos fazendo o sinal da cruz. Ali, bem no lugar da mandinga e, quem não pode com mandinga, não carrega patuá; o gado vendido que estava sendo tocado, refugou e voltou em desvario pra trás, em debandadas. As reses fugiam como o diabo da cruz. Os boiadeiros assustados, amaldiçoando a feitiçaria, temendo homem de tão medonho compadrio, desfez a trapaça e pagou o preço justo .
O pai entusiasmado por ser dele toda a atenção continuou : - E lembra, Meire - esse não era o nome da mãe,mas da amante - aquela história da assombração que roubava mantimento?
...!!!
Os pequenos, agora sentados em volta da fogueira, iluminados pela luz difusa da lua e do fogo, ouviam atentos, temerosos de tão fantástico parentesco.
Quando o tempo se fez frio, quando a conversa foi se tornando espaçada, quando os olhos se fizeram pesados, resolveram então voltar para o conforto do casarão.
Pai com desvelo, encaminhou a prole de volta.No meio do caminho foram surpreendidos pelos filhos de Passarinho. Vinham vindo trôpegos, desconjuntados, balbuciando desconexos monossílabos, exalando o espanto.Chico Bola na sua retardice de olhos medonhamente arregalados, mal aflorava os lábios.Maria estancou, não queria saber, doía-lhe os ossos, a vista turvava, ante-sentia a tragédia.Ouvindo o mal-contado puderam apurar: Sá Orides fazia sabão preto. Não era noite de lua cheia? Aproveitava a claridade. Os filhos brincando no terreiro, felizinhos eles estavam. O tacho medonho de cobre no centro, dentro o sabão fervendo, fora correria de menino. O descuido, um esbarrão na alça e as lavas negras, borbulhantes, derramando por sobre o corpinho franzino, miúdo, tão- há- pouco- alegrinho do menino de cabelos louros e compridos, promessa...ACUDA PATRÃO! E no silêncio curto do espanto, Maria ouviu a lâmina sendo afiada, sentiu o fio da foice riscar sua pele e veio então o arrepio.
Maria, como uma sonâmbula, continuou a descer a estrada; através dos olhos embaçados - a lágrima não escorria, estava ali presa e haveria de estar ali sem derramar, sem alívio - viu pai, os irmãos mais velhos, mãe, desequilibrada nos pés, tomarem o trilho da casa de Passarinho. Eles, outros, ainda pequenos pra tamanha "precuada", continuaram a marcha.O luar bestificado os acompanhou.