segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Um alarme falso & Um alerta real

A idade chega e o corpo às vezes, muitas vezes, não mais reage como o cérebro comanda. Acreditando “ainda poder”, alguns a si impõem um ritmo de trabalho que, por mais que queira, o corpo – todo o corpo, ossos, órgãos, músculos e tecidos – não pode suportar.


Pode ser isso o que ocorreu comigo: Num sábado, após uma quinta e sexta-feira em que eu tinha me deslocado de Mato Grosso para São Paulo, capital e interior, e trabalhado num afã de mundo acabando, sem dormir e sem me alimentar direito, fui internado em Nova Olímpia, por conta de uma pneumonia.  Três dias depois estava liberado, mas uma tosse persistente e uma febrezinha incômoda continuou a me acompanhar por vários dias.

Uma nova radiografia e uma mancha no pulmão direito apontando para a possibilidade de uma “formação tumoral”.

É claro que preocupou!

De Nova Olímpia para Belo Horizonte e alguns scaners, radiografias e exames diversos após, o bom – ou, dos males o menor – diagnóstico: “Apenas” um enfisema no pulmão direito, comprometendo parte de minha capacidade aeróbica, sem maiores conseqüências.

Figurativamente a médica me explicou: “Imagine o pulmão como sendo um cacho de uvas. As uvas são os alvéolos. Agora imagine que algumas das uvas deste cacho murcharam... Isto se constitui no enfisema”. Não tem cura, porém cessada a causa – no meu caso o cigarro – cessa o progresso do mal. As conseqüências mais graves são a menor capacidade de troca de oxigênio com o sangue e uma maior susceptibilidade a infecções respiratórias, como a pneumonia, por exemplo.

O alarme, graças a Deus, foi falso, mas fica aqui registrado um alerta real para os Ferreira fumantes:  Não vale a pena!

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

João Bica

(Amanhecer no Rio Guaporé - RO - Por Maferreira)

Deitado numa rede encardida e um tanto desfeita, estendida sob a sombra rala de um Pequiá, em frente a um precário rancho de madeira, João Bica suava entorpecido pelo mormaço úmido e denso da floresta espessa. A sua volta, cerca de meia dúzia de anus agourentos bicavam larvas incautas que brotavam de alimentos podres espalhados ao redor.

Já havia decorrido mais de mês desde aquela tarde em que encontrara sua casa vazia, ao voltar exaurido e descorçoado, após mourejar sem nenhum resultado nas seringueiras da Trilha Velha, lá para os lados do Ribeirão do Capitão: Naara havia partido.

Naara, uma mameluca de Guaicuru que com ele vivia desde o dia em que apeou de seu cavalo em frente à Venda do João Gordo, o pai da mestiça, e entregou as elas as rédeas do animal para que fosse amarrado sob a sombra de uma aroeira frondosa próxima dali. Naquele instante se viu refletido no negrume dos olhos amendoados da chinoca e soube que a levaria consigo floresta adentro. Ela o seguiu sem lamento e nem riso, apenas se deixou ser levada por aquele homem tosco, de pele avermelhada, poucas palavras e nenhuma leitura. Não queria para si o destino da Índia, sua mãe, que por desgosto definhou até a morte, sufocada naquela vendinha enterrada na borda da mata, onde apenas raros aventureiros ajagunçados mostravam-se. Então, se acomodou, primeiro ao lado dele numa esteira desenrolada no chão de um quartinho nos fundos da venda e depois na garupa do baio rumo às trilhas das seringueiras, embrenhando-se floresta adentro.

Não logrou escapar da sina de sua mãe. Tempos depois a tristeza a alcançou numa cabana na margem direita do Guaporé e, então, uma vez mais, se deixou ser levada pela correnteza, desta feita de um rio. João Bica sequer fez menção de ir ao seu encalço. Embora ajuizasse ter ela se deixado levar pelas águas, uma vez que, embora uma de suas canoas houvesse sido desamarrada, todos os remos continuavam, como ainda hoje estão, estendidos sobre o jirau. Sem remos ela não iria longe, não seria difícil alcança-la, mas não valia a pena. Nada valia a pena: O látex, já de muito minguado, secara de vez nas veias das seringueiras; a malária que o acometera há cerca de dois anos, o reduzira a um homem desvalido, a um apoucado seringueiro com cada vez menos ânimo para lida; as crias não vingaram, cinco ou seis, não mais se dava conta, escoaram coxas abaixo de Naara sem que lhe arrancasse um só arrulho; agora ele retribuiria, deixando que também ela escoasse rio abaixo sem que um só gemido fosse ouvido de seus lábios.

Desde então, João bica jogou-se naquela rede e ali se deixou ficar.

Morrer é tão difícil! Ainda que pouco reste para morrer, a vida insiste em manter-se viva. Agarra-se a tênues fios, frágeis raízes que pendem sobre o penhasco que se abre para o nada e ali se sustenta por mais alguns segundos, a cada instante morrendo mais um pouco, até que nada reste... Mais fácil é matar do que se deixar morrer!

João Bica delirava, dia e noite se misturavam, realidade e delírios se fundiam e nada mais lhe fazia sentido. Hora Naara umedecia seus lábios secos com uma paina molhada, deitando-se, em seguida, ao seu lado na rede coberta com flores; hora era uma parda esturrando a poucos metros da tapera; outras vezes uma chuva torrencial desabava sobre sua febre; ainda outras se banhavam, nus, ele e Naara, numa cachoeira do Cabixi; e ele que nunca temeu a sombra densa da floresta, nem tão pouco os bichos que nela habitavam, agora, entre sonhos e delírios, horrorizava-se ante a iminência de ter seus ossos triturados pelas presas de alguma onça faminta.

Naquela tarde, subitamente sentiu-se bem. Apeou da rede e nem se deu conta da quantidade de moscas que esvoaçaram desde as feridas de sua pele, olhou em direção ao Guaporé, cujas águas escoavam tranqüilas banhadas pelas cores das luzes de mais um estupendo por de sol e, quase que com a agilidade daquele gaúcho aventureiro que há mais de vinte anos desembocara naquelas terras inóspitas, sedento de aventuras, caminhou até sua margem. Estava praticamente nu. O corpo descarnado, a pele coberta por chagas, os lábios secos e rachados e, inesperadamente, feliz. No meio do rio, numa canoa rasa, de pé, envolta pela luz ofuscante do sol poente, estava ela... Braços estendidos para ele.

Arrancou os poucos trapos imundos que ainda o cobriam, trazendo junto alguns pedaços da pele putrefata e com um grunhido de um porco selvagem ferido lançou-se nas águas do rio...

A primeira piranha chegou atraída pelo odor das antigas escaras, ou talvez pela cor viva das feridas recém originadas, de quando arrancou pedaços da pele aderida aos andrajos que o cobriam. Veio ágil e leve, como uma improvável borboleta aquática e o mordiscou... A dor foi insignificante, desprezível mesmo, como uma leve descarga elétrica, mas o suficiente para incitá-lo a ir mais rápido rumo ao barco que o acolheria. Um fino filete de sangue e mais um grupo ligeiro daqueles peixinhos coloridos. Agora sim: Beliscões sucedem-se e dentes afiados picotavam seu corpo descarnado. Mais peixes chegam alvoroçados, uma água densa e avermelhada, borbulha, como em ebulição, em torno de João Bica que ainda se debate... Não por muito tempo. Em breve, com macabros movimentos advindos da força daquelas bocas esfaimadas, seu flutuará inerte levado pela correnteza do inofensivo Guaporé.



sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Abelhas II

 O que nos relatou o Tarlei me fez lembrar de outro acontecimento envolvendo ataque de terríveis Abelhas. Foi há muito tempo, lá em Paulo Freitas e assim não me lembro com precisão dos detalhes, nem tão pouco de todos os envolvidos. Desta forma vou postar como me ocorrer, sem maiores preocupações com a verdade.

Quem estava lá pode contribuir comentando ou completando o post, ok?



Férias de Dezembro, não havia outra escolha: Todos para a Fazenda! Naquela época as aulas só eram retomadas em março, assim, eram três meses de pura Alegria.

É provável que os Ferreira da nova geração (sobrinhos em geral) desconheçam o “nosso mundo” de então. A mítica Fazenda dos Coelhos era apenas parte de um extenso território que a nós pertencia – se não de direito, de fato – composto pela Fazenda do Padrinho Valdemar; toda a serra (e não apenas a área que constava da escritura da Fazenda dos Coelhos); as várzeas do João Campos, assim como vasta extensão de outras várzeas do Rio Capivari; os campos de Dona Chanica; a mata proibida do Seu Waldemarzinho... E muito mais. Era desembarcar em Paulo Freitas do trem da RMV vindo de Lavras e transpor um portal para um reino que nos transformava.

A casa sede da Fazenda dos Coelhos, neste período, usualmente ficava “lotada”, com todos seus seis quartos, mais o “quartinho”, que ficava na parte inferior da casa, ocupados por primos (as), amigos (as) e afins – como gosta de usar o Tarlei – que se encarregavam de tornar os dias curtos para tantas atividades. Uma das atividades preferidas era as longas cavalgadas pelos domínios do Reino. Um bando montado rumo às “aventuras nossas de cada dia”. Éramos tantos que frequentemente os cavalos e o arreamentos, nossos e do Padrinho Waldemar, eram insuficientes, sendo necessário recorrer ao empréstimo com algum vizinho.

Naquele dia não tínhamos objetivo muitos ousados. Limitar-nos-íamos (bonito isso, não?) a escalar a serra, subindo o Córrego do Bambu, desde a casa do José Caetano, até o seu primeiro patamar (ou banco, como o denominávamos). Por alguma razão da qual não me lembro, fomos a cavalo até o pé da serra e junto ao córrego, já dentro de uma restinga ciliar, apeamos, amarramos os cavalos sob a sombra fresca, afrouxamos as barrigueiras, apanhamos os bornais lotados com as matulas e iniciamos a escalada.

Éramos um grupo considerável. Creio que dos irmãos, do Milton Junior para cima estávamos todos; as primas por parte da Tia Chiquinha e Padrinho Waldemar – o Darci nunca, ou quase nunca, fazia parte do grupo; creio que o Tio Tarlei também estava e, ainda, a Vera Lúcia filha da Tia Dica, mas não tenho certeza disto, e também o cachorro do Padrinho Waldemar (não me lembro o nome dele. Não sei se fidalgo, plutão...).

Quando atingimos o banco, tratamos de encontrar uma árvore sombrosa, o que se deu junto a um penhasco pequeno de onde se descortinava uma bela vista. Ali ancoramos e iniciamos, entre prosas e risos, a dura tarefa de consumir a merenda. Daí a pouco um grito, alguém se levantou esbaforido, dando de braços como um maluco... Logo um outro, um zumbido, em instantes um enxame de abelhas caiu sobre nós. Pânico, correria, ferroadas alucinantes, gritos, choro... “Deita todo mundo e não se mexam!” – alguém, sei lá quem, poderia até ter sido eu, ordenou. Que nada! As abelhas caiam em cima e logo estávamos todo de pé, no debatendo aos berros. “Para o pocinho!”... E nos amontoamos num poço menor que uma tina, jogando água para cima, com o intuito de afugentar as melíferas assassinas. “Esfreguem alecrim! “... E assim fomos descendo a serra, na correria e sob risco de uma queda, até que em determinado ponto as Apis Melíferas nos abandonaram. Não me lembro em que ponto e nem quanto tempo ficamos sob ataque. Sei que foi um longo tempo.

Milton, Ana Lúcia e o cão ficaram em estado deplorável: O Cachorro, um vira-lata com sangue de fila, ficou deformado. Uma cabeça enorme, ainda assim com um focinho horrorosamente desproporcional. Ana Lúcia com uma cara de lua cheia, sem olhos, com náuseas e vômito. Milton não muito diferente disto, também fortemente intoxicado. Os demais, inchaços generalizados e inúmeros ferrões a serem retirados, o que era feito por um em outro, enquanto era combinada a aventura do dia seguinte.

Felicidade pouca era bobagem!!!


Coisa medonha... É mesmo prá pegar nojo de Abelha, não é Tarlei?

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quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Marcus Aurelius






Este meu chará era F... !



Caesar Marcus Aurelius Antoninus Augustus, conhecido como Marco Aurélio (26 de abril de 121 – 17 março 180), foi imperador romano desde 161até sua morte. Nascido Marco Ânio Catílio Severo (Marcus Annius Catilius Severus), tomou o nome de Marco Ânio Vero (Marcus Annius Verus) pelo casamento. Ao ser designado imperador, mudou o nome para Marco Aurélio Antonino, acrescentando-lhe os títulos de imperador, césar e augusto. Aurelius significa "dourado", e a referência a Antoninus deve-se ao fato de ter sido adoptado pelo imperador Antonino Pio.


Seu reinado foi marcado por guerras na parte oriental do Império Romano contra os Partas, e na fronteira norte, contra os Germanos. Foi o último dos cinco bons imperadores, e é lembrado como um governante bem-sucedido e culto; dedicou-se à filosofia, especialmente à corrente filosófica do estoicismo, e escreveu uma obra que até hoje é lida, Meditações.

Marco Aurélio escreveu os doze livros das Meditações em grego, como uma fonte para sua própria orientação e para se melhorar como pessoa. É possível que grandes partes da obra tenham sido escritas em Sírmio, onde ele passou muito tempo planejando campanhas militares entre os anos de 170 a 180. Sabe-se que partes dela foram escritas enquanto ele estava acampado em Aquincum, na Papônia, devido às notas na própria obra que indicam que o segundo livro foi escrito durante suas campanhas contra os Quados, no rio Granova (atual Heron), e o terceiro livro foi escrito em Carnuto. Não se sabe ao certo se ele teve a intenção de publicar seus escritos, e o título "Meditações" é apenas o mais célebre dentre diversos outros comumente designados à coleção. A obra segue o formato de citações, que variam em tamanho, de uma frase a parágrafos longos.

Suas idéias estóicas frequentemente giram em torno da negação de uma emoção, de uma habilidade, que, segundo o autor, libertarão o homem das dores e dos prazeres do mundo material. A única maneira de um homem ser atingido pelos outros seria se ele permitisse que sua reação tomasse conta de si. Marco Aurélio não mostra qualquer fé religiosa em particular nos seus escritos, mas parecia acreditar que algum tipo de força lógica e benevolente organizasse o universo de tal maneira que até mesmo os acontecimentos "ruins" ocorressem para o bem do todo.



Filosofia de Marcus Aurelius:




“O homem comum é exigente com os outros. O homem superior é exigente consigo mesmo”.

“A nossa vida é aquilo que os nossos pensamentos fizerem dela”.

“O melhor modo de vingar-se de um inimigo, é não se assemelhar a ele”.

“Nada de desgosto, nem de desânimo; se acabas de fracassar, recomeça”

"Muitas vezes erra não apenas quem faz, mas também quem deixa de fazer alguma coisa".

"Antes o reprovamento por um gênio do que um louvor de um idiota".

"Quanto não ganha em tranqüilidade quem não se preocupa com o que o vizinho diz, faz ou pensa, mas apenas com os seus próprios atos".

"Se te ocorrer, de manhã, de acordares com preguiça e indolência, lembra-te deste pensamento: 'Levanto-me para retomar a minha obra de homem.'".

"Pratica cada um dos teus atos como se fosse o último da tua vida".

"Mantenha-se simples, bom, puro, sério, livre de afetação, amigo da justiça, temente aos deuses, gentil, apaixonado, vigoroso em todas as suas atitudes. Lute para viver como a filosofia gostaria que vivesse. Reverencie os deuses e ajude os homens. A vida é curta".

"A experiência é um troféu composto por todas as armas que nos feriram".

"Mais penosas são as conseqüências da ira do que as suas causas".

"Mudar de opinião e seguir quem te corrige é também o comportamento do homem livre".

"A arte de viver é mais parecida com a luta do que com a dança, na medida em que está pronta para enfrentar tanto o inesperado como o imprevisto e não está preparada para cair".

"A maior parte das coisas que dizemos e fazemos não é necessária; quem as eliminar da própria vida será mais tranqüilo e sereno".

"Não se é menos culpado não fazendo o que se deve fazer do que fazendo o que não se deve fazer".

"Não desprezes a morte; dá-lhe boa acolhida, como a uma das coisas que a Natureza quer".

"Quem peca, contra si peca; quem comete injustiça, a si agrava, porque a si mesmo perverte".

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Oráculo

A foto, tão linda,me fez lembrar do que escrevi no famigerado "Avesso". Depois que eles se foram, não escrevi mais. Aí está um pouco dessa auto ficção:
"Feliz se sentira naquela noite, noite de lua cheia e céu estrelado; noite que se contorcia de tanta beleza e era beleza tanta que a gente da casa falava baixo, macio; falava com a sabedoria que vinha das entranhas da terra;do calor subterrâneo das raízes das árvores; do mistério sombreante da serra, agora adormecida. Naquela noite todos saíram de casa, a lua convidara. O luar se insinuava pelas janelas, pelos traçados enlourados, encantantes desenhados nas tábuas do piso; a lua, naquela noite, os queria cúmplices.E assim foram todos passear na estrada, beirar a serra.
Na frente, puxando a tropa, iam mãe e pai enlaçados naquele abraço eterno. De vez e outra, olhavam para trás, cuidavam para que nenhuma de suas ovelhas se desgarrasse.E havia em seus olhares orgulho, prazer enorme de tantos filhos e, quando o menorzinho se mostrou cansado, pai o colocou em seus ombros fazendo com que a criança se agigantasse na continuidade daquele que era para todos herói, homem com H. Logo em seguida, vinham as meninas, de braços dados, em risinhos secretos, já confidenciando com a lua esperanças de amores futuros...mulherzinhas.
Maria buscava a companhia do primogênito.Esse estudava na capital,porém estava de férias na fazenda.Trazia os cabelos longos e a barba por fazer, os olhos fundos, boêmios e uma magreza mítica; trazia também, e era por que Maria ardia, um saber às avessas, um conhecimento de si, um lirismo convulso traduzido em poemas. Maria tomou-lhe a mão e foi gentilmente, sorrateiramente, forçando-o a distanciar dos demais. E assim envolvidos pelos cicios, pelo cintilar dos vaga-lumes, pelo luar..."Mas não foge o covarde, apenas se submete. Deixa-se ser engolido antes mascado como chiclete,... Até os intestinos, onde se faz numa excrescência... Surpreende o frio do amanhecer, do lusco-fusco. Covarde. Da cama até a porta rasteja o molusco”. Maria não decifrava as palavras, mas pressentia o significado, prenunciava a epifania, comungava a substância.Maria, em sobressaltos, sonhava...Um dia, falaria assim, revelar-se-ia assim...Era bonito, doía fundo...
E por último, vindo em grande algazarra, a criançada que corria, levantava poeira, aprisionava vaga-lumes, Bené os liderava
Ao pé da montanha, oráculo sombrio, acenderam uma fogueira e rodearam-na como se fossem uma primitiva tribo.Pai e mãe relembraram o passado; as mocinhas, curiosas, ouviram a história do primeiro encontro; inibidas, do primeiro beijo.O primogênito se isolou buscando rimas nas estrelas.Bené desenhava na escuridão, o tição volvia criando imagens fugazes. O endiabrado corria atrás dos pequenos que viam suas sombras se confundirem com as da criação que indiferente pastava ao redor. Maria ali estava sendo duas.Maria era assim: havia uma que existia e outra que se ausentava para sentir.
Então pai, já preocupado com o desassossego dos pequenos, abandonou românticas histórias e começou a contar assombrados causos.E começou assim, devagarinho como quem não quer nada, desconsiderando a esperada introdução: era uma vez.O que queria pai era que as crianças fossem laçadas pela saga, não pelo o de costume:
- E era assim Papai Américo, um homem diferente, diferente para os tempos de agora, não para os de outrora - disse olhando as chamas como se delas lhe viessem as lembranças. - Naquele tempo havia gente assim, gente mancomunada com os que já foram, com os que são almas de iluminação ou com os que são almas penadas, tratadas de assombração.
E os pequenos como que hipnotizados, vieram buscando assento, aconchego. A noite enluarada exigia presença de estranhas entidades e as crianças sentem primeiro sua proximidade.
-Papai Américo tinha tutano, mando nos de outras esferas. Tanta era sua força que nos idos anos do outro século, benzeu seu próprio filho picado de cobra, cobra venenosa, uma cascavel.Taí sua mãe pra provar que a cria se salvou, a cria era o pai dela. Conta-se também que, um dia Papai Américo se desentendeu com um comprador de gado. Mau negócio, levou manta. Acabrunhado, fez uma reza brava e quando o comprador ia levar o gado... Na frente da porteira da saída, Papai Américo deu uns pulinhos xistosos fazendo o sinal da cruz. Ali, bem no lugar da mandinga e, quem não pode com mandinga, não carrega patuá; o gado vendido que estava sendo tocado, refugou e voltou em desvario pra trás, em debandadas. As reses fugiam como o diabo da cruz. Os boiadeiros assustados, amaldiçoando a feitiçaria, temendo homem de tão medonho compadrio, desfez a trapaça e pagou o preço justo .
O pai entusiasmado por ser dele toda a atenção continuou : - E lembra, Meire - esse não era o nome da mãe,mas da amante - aquela história da assombração que roubava mantimento?
...!!!
Os pequenos, agora sentados em volta da fogueira, iluminados pela luz difusa da lua e do fogo, ouviam atentos, temerosos de tão fantástico parentesco.
Quando o tempo se fez frio, quando a conversa foi se tornando espaçada, quando os olhos se fizeram pesados, resolveram então voltar para o conforto do casarão.
Pai com desvelo, encaminhou a prole de volta.No meio do caminho foram surpreendidos pelos filhos de Passarinho. Vinham vindo trôpegos, desconjuntados, balbuciando desconexos monossílabos, exalando o espanto.Chico Bola na sua retardice de olhos medonhamente arregalados, mal aflorava os lábios.Maria estancou, não queria saber, doía-lhe os ossos, a vista turvava, ante-sentia a tragédia.Ouvindo o mal-contado puderam apurar: Sá Orides fazia sabão preto. Não era noite de lua cheia? Aproveitava a claridade. Os filhos brincando no terreiro, felizinhos eles estavam. O tacho medonho de cobre no centro, dentro o sabão fervendo, fora correria de menino. O descuido, um esbarrão na alça e as lavas negras, borbulhantes, derramando por sobre o corpinho franzino, miúdo, tão- há- pouco- alegrinho do menino de cabelos louros e compridos, promessa...ACUDA PATRÃO! E no silêncio curto do espanto, Maria ouviu a lâmina sendo afiada, sentiu o fio da foice riscar sua pele e veio então o arrepio.
Maria, como uma sonâmbula, continuou a descer a estrada; através dos olhos embaçados - a lágrima não escorria, estava ali presa e haveria de estar ali sem derramar, sem alívio - viu pai, os irmãos mais velhos, mãe, desequilibrada nos pés, tomarem o trilho da casa de Passarinho. Eles, outros, ainda pequenos pra tamanha "precuada", continuaram a marcha.O luar bestificado os acompanhou.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Quitanda



(Foto retirada da internet - Não se trata da "Casinha do Forno", da Fazenda dos Coelhos, em Paulo Freitas)





As primeiras a sair eram as pamonhas... Não as pamonhas como as que hoje se conhece, talvez até fossem broas de milho, contudo nós as conhecíamos como pamonhas, então, pamonhas são. Mas antes disto um delicioso ritual se processava.

O termo “quitanda” tem origem africana, quibumbo-kitanda, que significa mercado de doces, doces de tabuleiro ou qualquer doce de forno.

Lá em Paulo Freitas, na Fazenda dos Coelhos, as delícias ganhavam vida na “casinha do forno”, a primeira de três “casinhas” em meia água, geminadas, construídas no amplo terreiro cimentado, no fundo da qual se erguia um majestoso forno em alvenaria, tudo construído segundo projeto e administração do empreendedor Milton Ferreira.

A primeira coisa a se fazer era aquecer o forno. A técnica era simples: Escolher lenha de boa qualidade e seca (A melhor é a “lenha do mato” – afiançava Sá Eurides); arranjar a lenha, os gravetos e a palha de milho no forno; atear o fogo – com a porta e escotilha abertas para que se formem as labaredas; fechar e vedar porta e escotilha, para formar um braseiro e quando a temperatura estiver ideal varrer o forno com vassouras de alecrim-do-campo (até hoje sinto o cheiro da essência exalada pelo alecrim aquecido!). Para se determinar a temperatura ideal do forno usa-se a palha do milho, que se retorce sob o calor, assumindo uma cor castanho-escuro que é indicativa da temperatura adequada ou, mais fácil, a experiência de uma boa quitandeira, que lá em casa era a Sá Eurides. Melhor não havia nas redondezas!

Enquanto o forno aquecia, ou até mesmo antes de aceso, ocorria a preparação das “massas”. Tudo, ou quase tudo, nas “gamelas de pé” ou “simples”. Lá em casa havia uma “gamela de pés” que foi fabricada - não sei por quem – em peroba rosa e que era constituída por duas “cubas” grandes, escavadas em um único tronco, a estrutura de suporte e os pés; e várias “gamelas simples”. Nesta empreitada de preparar as massas, D. Lilia não apenas supervisionava as atividades, mas também participava ativamente da lida, literalmente “metendo a mão na massa”.

A nós crianças cabia meter os dedos sujos naquelas massas cremosas, chupar, meter de novo os dedos, e ser enxotados por Sá Eurides.

Depois era enrolar as pamonhas em folhas de bananeira, enrolar os biscoitos de polvilho e os biscoitões, torcer as bolachas, trançar as roscas e tudo mais que D. Lilia julgasse adequado. Distribuir simetricamente nos tabuleiros de alumínio e levar ao forno para assar, segundo ordem estabelecida pela quitandeira, Sá Eurides, com a anuência de D. Lilia. Certamente essa ordem foi estabelecida em conformidade com a temperatura do forno, que diminuía com o decorrer do tempo. Assim, como já foi dito, primeiro eram as pamonhas, depois as broas de milho, os biscoitos pesados (biscoitões), os biscoito de trigo, os pães de queijo, as bolachas, as roscas e, por último, os biscoitinhos, ou biscoitos de polvilho. No fim da tarde, usualmente, entrava um lombo ou pernil de porco e que só sairia no dia seguinte, com um sabor indescritível (como diria o Thiago: de comer orando! – Ou seria o Lucas?).

Nas férias de julho, bastavam duas fornadas. Eram suficientes para abastecer a prole esfaimada durante o mês e ainda levar uma boa quantidade para a cidade. Nas férias de dezembro, eram requeridas quatro ou cinco fornadas, dependendo da quantidade de amigos, parentes e afins que vinham passar férias na lendária Fazenda dos Coelhos.

Tudo isso foi escrito apenas para dizer da saudade daqueles cheiros, daqueles sabores e daquela alegria que, pelo menos para mim, é inigualável.