sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Era mulher

Como as mulheres desta família, estão muito silenciosas, resolvi provocá-las com o começo de mais uma estória:

"Era mulher.E isso era tudo que possuía.Sabia-se mulher.Os longos dedos sapateando no teclado denunciavam essa feminilidade tímida, ritmada.Era mulher e os fios de cabelos escorrendo pela face completavam: é mulher não enxerga bem.Sabia-se mulher.Que o diga o roupão aberto oferecendo os seios.
Ali estava ela diante da tela buscando a palavra exata,mas era mulher e a língua passeando entre os dentes,pressionando o escorregadio da alvura ironizava a precisão insensata da palavra exata.
A língua, os dentes... os dentes, muralha para palavras opalas,deixavam que a língua por eles deslizasse desenhando contatos lascivos,profanando reentrâncias ásperas...
-Clarice!...Clarice! Terminou?
Não.Não terminara.Terminou o quê?Era mulher, essa coisa vaga que não se finda,que depois do ponto há um pouco ainda.
-Clarice!..Clarice!Não está me ouvindo?
Sim,ouço.Ouço essa voz que me interrompe, que me incomoda, que me estorva.Mas sou mulher e aprendi a criar o silêncio, a me fechar em copas e ignorar a resposta.
-Clarice!...Clarice!Meu amor,o tempo ruge!
Ruge o tempo.Estanca o próximo passo, perde-se o compasso, chama o cansaço, adormeço nos seus braços?Era mulher, esperaria o desabafo.
-Clarice!...Clarice!...Não se faça de tola?
Ah!não me peça isso!Como decifrá-lo não me fazendo de tola?Era mulher e assim aprendera a fingir aí estar quando não estava nem aí, a conversar quando nem enfrentara o monólogo, a aturar até mesmo quando o corpo eriça feito felina.
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Cessou.Nem mais um chamado.
Ali estava ela diante da tela buscando a palavra exata.Como encontrá-la?Palavra exata para idéia barata.Barata..Samsom transformara-se em barata,mas ela não lera Kafka.Coisa asquerosa...e o torvo pensa em mim.Plágio?Era mulher e ui, como sabia plagiar: metamorfose de areia em águas .No plural.As águas expandem, escorrem, derramam,moldam...águas molham,ensopam.Era mulher,essa coisa úmida, molhada,encharcada.Águas, gotículas bem disfarçadas em unidade.Coisa mais feminina.
A palavra exata é água. Águas em cascatas ,águas em música.
-Clarice!...Clarice!...Vem dormir?
Justo agora?Tenha pena!Encontrei a palavra exata.Era águas.Assim no plural,em discordância. E isso era tudo que possuía.Era mulher e agora também águas.
-Clarice!...Clarice!...Vem dormir!
Não já.Acabara de acordar para quem ela era.Dormir? Não agora.Morrer poderia.E vomitar uma estrela de cinco pontas aguadas.Mas essa era outra Clarice.
-Clarice!...Clarice!...Terminou?Sim, terminara.Garimpando a palavra,completara a idéia.Não, não era barata

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