quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

João Bica

(Amanhecer no Rio Guaporé - RO - Por Maferreira)

Deitado numa rede encardida e um tanto desfeita, estendida sob a sombra rala de um Pequiá, em frente a um precário rancho de madeira, João Bica suava entorpecido pelo mormaço úmido e denso da floresta espessa. A sua volta, cerca de meia dúzia de anus agourentos bicavam larvas incautas que brotavam de alimentos podres espalhados ao redor.

Já havia decorrido mais de mês desde aquela tarde em que encontrara sua casa vazia, ao voltar exaurido e descorçoado, após mourejar sem nenhum resultado nas seringueiras da Trilha Velha, lá para os lados do Ribeirão do Capitão: Naara havia partido.

Naara, uma mameluca de Guaicuru que com ele vivia desde o dia em que apeou de seu cavalo em frente à Venda do João Gordo, o pai da mestiça, e entregou as elas as rédeas do animal para que fosse amarrado sob a sombra de uma aroeira frondosa próxima dali. Naquele instante se viu refletido no negrume dos olhos amendoados da chinoca e soube que a levaria consigo floresta adentro. Ela o seguiu sem lamento e nem riso, apenas se deixou ser levada por aquele homem tosco, de pele avermelhada, poucas palavras e nenhuma leitura. Não queria para si o destino da Índia, sua mãe, que por desgosto definhou até a morte, sufocada naquela vendinha enterrada na borda da mata, onde apenas raros aventureiros ajagunçados mostravam-se. Então, se acomodou, primeiro ao lado dele numa esteira desenrolada no chão de um quartinho nos fundos da venda e depois na garupa do baio rumo às trilhas das seringueiras, embrenhando-se floresta adentro.

Não logrou escapar da sina de sua mãe. Tempos depois a tristeza a alcançou numa cabana na margem direita do Guaporé e, então, uma vez mais, se deixou ser levada pela correnteza, desta feita de um rio. João Bica sequer fez menção de ir ao seu encalço. Embora ajuizasse ter ela se deixado levar pelas águas, uma vez que, embora uma de suas canoas houvesse sido desamarrada, todos os remos continuavam, como ainda hoje estão, estendidos sobre o jirau. Sem remos ela não iria longe, não seria difícil alcança-la, mas não valia a pena. Nada valia a pena: O látex, já de muito minguado, secara de vez nas veias das seringueiras; a malária que o acometera há cerca de dois anos, o reduzira a um homem desvalido, a um apoucado seringueiro com cada vez menos ânimo para lida; as crias não vingaram, cinco ou seis, não mais se dava conta, escoaram coxas abaixo de Naara sem que lhe arrancasse um só arrulho; agora ele retribuiria, deixando que também ela escoasse rio abaixo sem que um só gemido fosse ouvido de seus lábios.

Desde então, João bica jogou-se naquela rede e ali se deixou ficar.

Morrer é tão difícil! Ainda que pouco reste para morrer, a vida insiste em manter-se viva. Agarra-se a tênues fios, frágeis raízes que pendem sobre o penhasco que se abre para o nada e ali se sustenta por mais alguns segundos, a cada instante morrendo mais um pouco, até que nada reste... Mais fácil é matar do que se deixar morrer!

João Bica delirava, dia e noite se misturavam, realidade e delírios se fundiam e nada mais lhe fazia sentido. Hora Naara umedecia seus lábios secos com uma paina molhada, deitando-se, em seguida, ao seu lado na rede coberta com flores; hora era uma parda esturrando a poucos metros da tapera; outras vezes uma chuva torrencial desabava sobre sua febre; ainda outras se banhavam, nus, ele e Naara, numa cachoeira do Cabixi; e ele que nunca temeu a sombra densa da floresta, nem tão pouco os bichos que nela habitavam, agora, entre sonhos e delírios, horrorizava-se ante a iminência de ter seus ossos triturados pelas presas de alguma onça faminta.

Naquela tarde, subitamente sentiu-se bem. Apeou da rede e nem se deu conta da quantidade de moscas que esvoaçaram desde as feridas de sua pele, olhou em direção ao Guaporé, cujas águas escoavam tranqüilas banhadas pelas cores das luzes de mais um estupendo por de sol e, quase que com a agilidade daquele gaúcho aventureiro que há mais de vinte anos desembocara naquelas terras inóspitas, sedento de aventuras, caminhou até sua margem. Estava praticamente nu. O corpo descarnado, a pele coberta por chagas, os lábios secos e rachados e, inesperadamente, feliz. No meio do rio, numa canoa rasa, de pé, envolta pela luz ofuscante do sol poente, estava ela... Braços estendidos para ele.

Arrancou os poucos trapos imundos que ainda o cobriam, trazendo junto alguns pedaços da pele putrefata e com um grunhido de um porco selvagem ferido lançou-se nas águas do rio...

A primeira piranha chegou atraída pelo odor das antigas escaras, ou talvez pela cor viva das feridas recém originadas, de quando arrancou pedaços da pele aderida aos andrajos que o cobriam. Veio ágil e leve, como uma improvável borboleta aquática e o mordiscou... A dor foi insignificante, desprezível mesmo, como uma leve descarga elétrica, mas o suficiente para incitá-lo a ir mais rápido rumo ao barco que o acolheria. Um fino filete de sangue e mais um grupo ligeiro daqueles peixinhos coloridos. Agora sim: Beliscões sucedem-se e dentes afiados picotavam seu corpo descarnado. Mais peixes chegam alvoroçados, uma água densa e avermelhada, borbulha, como em ebulição, em torno de João Bica que ainda se debate... Não por muito tempo. Em breve, com macabros movimentos advindos da força daquelas bocas esfaimadas, seu flutuará inerte levado pela correnteza do inofensivo Guaporé.



Um comentário:

  1. ê, meus caros e dolorosos literatos! é um mais pungente que o outro. belo texto, tio. pobre joão bica... Thiago.

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