terça-feira, 11 de agosto de 2009

Um dia de Fúria

O temperamento indócil, o ritmo frenético, a gana por atingir seus objetivos em curtíssimo espaço de tempo e a incômoda e persistente falta de dinheiro, fizeram de nosso pai um homem de humor extremamente instável, oscilando, no milésimo de segundo da explosão de um flash, entre o de um pacato bichano a ronronar inofensivo ao do de um assustador leão a rugir enfurecido. Houvesse um psicólogo por perto e seria dito tratar-se de um comportamento bi-polar... Bobagem! Papai era na verdade um homem de “estopim curto”, muito curto...

Esse caráter explosivo foi o motor de vários súbitos surtos de fúria que, tão logo debelados, se transformavam em motivos para profundo arrependimento ou para boas risadas, dependendo de como o pós-surto fosse tratado por Dona Lilia.

Lembro-me de alguns deles: A batalha do trem; Passarinho, o retireiro bêbado; O leite derramado (que não se trata do livro de Chico Buarque); Confronto na roleta da estação... São alguns que me ocorrem agora.

Pretendo registrar neste blog aqueles dos quais me recordo bem, usando o máximo da memória e um pouco da imaginação quando necessário.

Se alguém se lembrar de mais detalhes dos que publico ou mesmo de outros, por favor, me corrijam ou publiquem os seus.

A banda de porco

Como era comum, papai tinha com Dorgino um capadinho criado “a meia”. Para os não tão caipiras, explico: Capadinho é um leitão castrado levado à ceva para recria e engorda e posterior abate; e “a meia” é uma forma de repartir custos e resultados em um empreendimento qualquer que, no caso, consistiu de ter nosso pai fornecido o leitão capado - cria de seu mangueiro - cabendo ao Dorgino, empregado na fazenda, arcar com os custos da recria e engorda.

A bem da verdade, essa modalidade de negócio interessava mais ao meeiro que trataria da recria e engorda e, por isso mesmo, papai sempre reivindicava para si algumas prerrogativas como, por exemplo, decidir pelo dia do abate segundo sua (leia-se de Dona Lilia) conveniência.

Passado algum tempo e tendo o bicho já dado fim em umas tantas quartas de milho, outras quantas de fubá e muita abóbora madura, de tão gordo que estava mal andava e Dorgino, lambendo os beiços só em pensar nas suculentas suãs que derivariam do suino, vinha humildemente insinuando para nosso pai que estava já passando da hora de fazer o torresmo, com o que papai até concordava.

Ocorre que Sá Eurides (Eurídice?) encontrava-se adoentada – espinhela caída – e mamãe, nem que a vaca tossisse, se arriscaria na empreitada de preparar o porco, ainda que fosse apenas uma banda (de novo, para os menos caipiras: Uma banda é a metade do porco que cabia a cada meeiro), sem a ajuda dela, por isso papai vinha sistematicamente postergando o abate.

Num domingo, por volta das dez horas da manhã, estávamos todos no alpendre, quando papai avistou o Dorgino, ainda lá do outro lado do corguinho, vindo na direção da sede... No ombro, a banda de porco pendurada.

- Aquele merda matou o porco! – Exclamou ele, surpreendido com tamanha ousadia e antecipando o que ouviria de reclamações, partiu chispado, cospindo fogo, ao encontro do camarada.

Julho, tempo seco, estrada poeirenta... O embate se deu ainda do outro lado do corguinho, logo após a primeira curva, em seguida a casa do Passarinho. Do alto de uma paineira que margeava a estrada, da porta de sua casa, apenas um joão-de-barro, acompanhou atônito o desenrolar do evento: A poeira subiu, a banda de porco desprendeu-se do ombro de um apavorado colono, indo parar no pasto ressequido, Dorgino, cara suja de pó, fez meia-volta e se mandou ligeiro, após o safanão, felizmente sem ser perseguido por papai... Mais não foi visto e tão-pouco ouvido. Não pelo joão-de-barro que agora já se ocupava novamente com sua casa.

Papai veio bufando... Assim que a porteira do eucalipto bateu e antes que o tempo esquentasse também para nosso lado, tratamos de escafeder-nos rumo ao pomar e quando os passos duros de papai ecoaram no assoalho de tábua corrida da sala, o último de nós já havia vazado pela porta da cozinha.

- Lilia... Lilia! – Gritava ele em busca de mamãe que, nessa altura dos acontecimentos, tinha se trancado no banheiro.

Do desfecho da história, sinceramente, não me lembro.

Como o porco não poderia ser reconstituído e tão-pouco ser ressuscitado, não sei se a banda voadora acabou sendo trazida para nossa casa, se o Dorgino ficou com as duas partes ou se a que foi parar no mato acabou por virar comida para os urubus... Sei que Dorgino continuou trabalhando normalmente na fazenda, ainda por muitos anos e que outros capadinhos foram dados à meia ao próprio Dorgino e a outros empregados de papai, sem que novos incidentes de maior gravidade ocorressem.

5 comentários:

  1. Saudades...que bom ouvir esses casos.Resolvi até postar um caso do Dorgino(nome instigante).Sei que a história foi outra ,mas Dorgino, Rola me aguçaram os sentidos...

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  2. Sensacional Colelo
    Tarlei

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