Naquela tarde eu já havia ido até a Estação, na Venda do João Lopes, de onde eu trouxe, a pedido de Dona Lilia, na garupa do Cavalo Marengo, o mais manso de todos, dois sacos com 50 kg de açúcar cada. Ficou na conta. Anotado numa caderneta de capa preta, sem a necessidade de ser a compra atestada.
“Dá pra começar... No sábado, buscamos mais.” – Sentenciou Dona Lilia, anunciando que teríamos pela frente uma atarefada e divertida semana fabricando Goiabada.
No dia seguinte, saímos nós, os “Colhedores de Goiaba”, em busca da matéria prima para o doce. Nos cavalos em montávamos – se não em todos, na maioria – estavam presos, um de cada lado e unidos entre si, dois latões com capacidade para cinqüenta litros de leite cada, os quais deveriam ser cheios com as frutas a serem colhidas. Algumas légua depois, nos campos do Mato sem Pau, ou nos pastos de Dona Chanica, ou ainda lá pras bandas do Seu Waldemarzinho, era iniciada uma alegre disputa de qual grupo encheria primeiro seus latões com aquelas frutas cheirosa, disputando-as com alguns maribondos e correndo sérios riscos de queda de uma goiabeira espigada.
No final da tarde retornávamos. As goiabas colhidas eram despejadas em grandes balaios de bambu e a noitinha, logo após o jantar, Dona Lilia juntava a “tropa” na cozinha e nos dividia em dois grupos: Os Cortadores, que armados com facas cumpriam as tarefas de limpar as goiabas – cortar a ponta e a bundinha e eliminar os “olhinhos pretos” – e as cortar, passando-as, em seguida, para a Turma da Colher, que, de colher em punho, se encarregava de retirar as sementes das goiabas cortadas, eliminando as sementes ruins e reservando as boas para a produção de geléia. A Turma da Colher era sempre constituída por menos componentes, uma vez que os Cortadores tinham mais atividades e, então, buscava-se manter o equilíbrio reduzindo a força daquela. Em que pese este artifício, era comum a Turma da Colher ficar sem matéria prima e quando isso ocorria todos batiam com a colher na mesa em provocação a lerdeza dos Cortadores.
Haja bagunça! Se Dona Lilia não impusesse ordem na turma, arriscava a cozinha transformar numa praça de guerra, com sementes e polpas de goiaba voando a esmo ou em direção dos adversários.
No dia seguinte as goiabas eram cuidadosamente lavadas, lançadas num tacho grande de cobre e levadas para uma fornalha baixa, acesa em fogo alto de lenha. Tudo isso na “casinha do tanque”, que era uma construção em meia-água, onde eram encontrados três tanques grandes de cimento e a tal fornalha. Ali Sá Eurides (a bem da verdade, não sei se era ela, Geracina, Maria Caetano... ou outra pessoa) com uma comprida colher de pau mexia sem parar as goiabas no tacho, até que se desfizessem numa massa avermelhada e fervente, espirrando para tudo quanto é lado e frequentemente atingindo a doceira, que se protegia como podia.
Nessa fase, cabia a nós, aguçados pelo cheiro intenso de goiabas cozinhando, aguardar o doce ficar no ponto – o que era precisamente decidido por Dona Lilia – e o tacho ser liberado para “ser raspado”.
Estripulias da Prole
Certamente isso tudo não ocorria sempre sem que a prole aprontasse alguma. Lembro-me agora dois casos:
A colherada:
Em certa ocasião, assim que o tacho de doce foi liberado para ser raspado pela galera miúda (raspar o tacho era a melhor atividade no processo de fabricação da goiabada) eu, com a autoridade que me conferia a primogenia, tratei logo de demarcar com o cabo da colher, áreas no tacho com porções mais ou menos equivalentes de doce. A cada um coube uma daquelas áreas para ser usufruída. Ao que me consta – mas sei que há controversas – Maria Aline andou invadindo a minha área... Também ao que me consta – e, uma vez mais, com contestações – foi alertada para a ilegalidade uma, duas, três vezes... Deu no que deu. Na quarta invasão, dei-lhe com o cabo da colher no cocuruto.
Foi uma sangueira dos Diabos!
Eu tentando acalmar Maria Aline – que já corria para me denunciar, ou para ser socorrida... Sei lá! – e com isso evitar os chinelos de mamãe ou o cinto de papai.
Do desfecho exato do acontecido eu não me lembro, mas sei que até hoje Maria Aline tem uma cicatriz (bem pequeninha) no topo da cabeça, que não a deixa esquecer de seu irmão querido.
O assalto às caixetas:
Muitos quilos de açúcar e de goiabas eram consumidos para fabricar muitas e muitas caixetas com goiabada, o suficiente para toda temporada de férias e mais uma grande parte do ano letivo. Em que pese a grande quantidade disponível, havia uma regra: “Sobremesa é uma vez só!” e sem discussões...
Não sei se todas as caixetas são assim, mas as nossas eram de madeiras, muito bem acabadas, e com uma tampa corrediça que deslizava horizontalmente, de modo a abrir e fechar a caixeta. Usualmente, essas caixetas eram guardas assim: Umas ou duas delas no armário da copa e que eram destinadas ao consumo diário, as demais – talvez cerca de vinte, ou mais – na casinha do canto. Essas eram destinadas a repor o de consumo diário e constituir o estoque a ser levado para a cidade, quando as férias terminassem.
Para servir o doce, papai, sempre ele, puxava a tampa da caixeta até cerca da metade da mesma, partia o doce e o distribuía para a turma.
Como eu disse: “Sobremesa uma vez só!”. Um pedaço para cada menino Eventualmente dois: Um para comer no prato com leite (não era sobremesa, eu creio) e outro como efetiva sobremesa. Fazer o que? O jeito foi apelar para o furto.
A casinha do canto, onde os mantimentos em geral eram estocados – inclusive as caixetas de goiabada – era mantida chaveada. O jeito era acessar a casinha do meio e, como todas – a do forno, a do meio e a do canto – não tinham laje, era só escalar a parede e pular de uma casinha para outra. Estando lá dentro, era abrir totalmente a caixeta e cortar o doce do fundo para a cabeceira, exatamente na direção contrária a do que papai seguiria, e depois voltar misturar a caixeta invadida entre as outras, cuidando para que ficasse o mais para fundo possível. Assim, mais tempo se levaria até que a tramóia fosse descoberta.
É claro que um dia descobriu-se... Sei lá o que aconteceu! Não me lembro de ter apanhado por conta disso.
Marco,
ResponderExcluirque saudades que me deu de uma boa goiabada. Alias de uma boa não, da "nossa goiabada"
Verdade.
ResponderExcluirComo a Miriam, ou melhor a Cocada, costuma dizer o sabor é da saudade.