Seis da manhã à beira da Fernão Dias. Bom dia! Foi uma noite de viagem tranquila, embora noites em ônibus nunca sejam bem dormidas. Ânimo, rapaz, menino, banana! Bananas as quais, com maçãs e barras de cereais, serão devoradas pelo caminho. A estrada é longa e o caminho é deserto e não há mais lobos maus por esse prado, embora haja outros, em peles de cordeiro. Mas toda atenção é pouca, porque o descanso ao corpo é apenas uma promessa distante, de quilômetros e quilômetros adiante. A mente, porém, de muito boa Fortuna, terá para si todo silêncio dos céus campeiros e todo verdejar das infindas estradas de terra e sonho de nossas Gerais. Avante, que longa será a pernada. O ar é leve e frio e aconselha um desjejum generoso, prontamente atendido, e um bom agasalho, que hesito colocar, afinal, o corpo logo se aquecerá. Alguns passos mais, entretanto, e logo cedo ao frio da manhã e à lua cheia estatelada ao limiar do horizonte: ponho o agasalho. Lucas, ao contrário, que me ensejou colocá-lo, fica com preguiça de revirar sua bolsa e é a ela, a preguiça, que cede. Quem cedeu melhor não sei, sei que meia hora depois já arrancava a dita blusa. Sim, de fato o corpo rapidamente se aquecera, mas qual o preço desses pequenos, desses tênues confortos, hein? Ora, vamos! Somos burguesamente bem aplainados, aclamamos nossos pequenos luxos, pregamos por nossos saudáveis e sustentáveis estilos de vida (será?). Caminhar, todos parecem saber, faz muito bem, mas ao contrário do que manda o costume não rumamos aos shoppings e seus mármores, mármores e mármores; nem compramos os melhores apetrechos e badulaques. Pois se assim, devidamente trajado estivéssemos, e se o praticássemos nas lagoas urbanizadas de nossas capitais, Ibirapueras, Barigüis, Conceições e Pampulhas da vida, então que nos dignificaríamos como eméritos e credenciados praticantes de um nobelíssimo esporte. Mas nada disso, conscienciosamente optamos por vestimentas zurradas e tênis esculachados, por sair à deriva pelas margens da rodovia, dando bom dia a cavalos, a caminhoneiros fritando ovos no acostamento, a senhoras idosas e prosaicas fazendo sabe-se-lá-o-quê, a vagabundos de beira de estrada... Oh, talvez então que esses meninos sejam dois andarilhos sujos! Com um provável pé nos movimentos de contracultura, e talvez mereçam um olhar de suspeita e reprovação. Sim, sim, que nossos códigos são todos bastante transparentes e não há porque mascará-los. Bom, talvez haja, mas um belo foda-se a conveniência! O andarilho sabe por que caminha. Não! Minto! O andarilho não sabe por que caminha, embora caminhe porque saiba. Ambíguo? Paradoxo? Pegadinha? Filosofia vã? Provavelmente, provavelmente... Mas parabéns! Se não compra à primeira vista tudo o que lhe vendem, tiro-lhe o chapéu que um dia ainda hei de usar. Questionar faz bem; é sinal de pensamento próprio; é sinal de que ainda estamos por aqui, entre pares; e será sempre um prazer estar entre vós. Do contrário, que nos importaria? Digressões demais, certo? Então, voltemos; voltemos de pressa ao bom caminho. Da rodovia havia um atalho, ou havia a lenda de um atalho, posto que não encontrado e por isso o desagravo de cruzar quase uma hora por tão inóspito trecho. Ah, resquício desagradável de homens! Não que sejamos misantropos, mas convenhamos: fumaça e barulho são mesmo um pé-no-saco. Sigamos, pois a natureza é pródiga em sorrir aos esforçados e logo nos surgirá a aconchegante estradinha de terra, o magnânimo sol despontará por entre as nuvens mais negras, os pássaros, seus emissários, brincarão em divertidas cirandas, e o delicioso cheiro de esterco, de campo, do mais bruto mato, nos invadirá os sentidos. Há algo de promissor e miraculoso nessas paragens de amanhecer, que os astros parecem criar para nosso prazer. Talvez um fio de esperança aos corações endurecidos. Talvez uma réstia daquela luminosidade matinal, que perfila os primeiros raios numa sincrônica e plástica dança da vida. E não haverá mais nada além da comunhão com tudo que de mais belo, porque de mais puro e singelo e honesto que sobre nós se derramará. E é incrível como a cada passo a natureza mais se embeleza, mais pacífica e mais diversa e tomada por gorjeios e pelos vários gaviões que os vem predar. E é fascinante acompanhar como cada vez mais essa fauna abunda e a flora viceja de uma riqueza absolutamente luxuriante. E como é doce acompanhar lentamente esse transmutar, passo a passo, nuance a nuance, até o esplendoroso sítio que nossos avós floresceram e frutificaram nesse pequeno paraíso encravado ao fim da estrada, aos pés do vale, às margens de águas tão remansas. Viagem ao passado que nos habita. Toda uma vida que regressa e que se encrusta na luz de nossos olhos, como nos olhos daqueles simplórios, daqueles serenos, daqueles sábios senhores da roça: “... ceis tão vindo lá do Crossville? Eita, que ceis tão animado demais! Mas bão pros tempo da cabeça, bão pros nós e pras junta que a cidade empena. Larguei aquela Sumpaulo depois de doze anos trabaiano na Sabesp. Agora cuido da roça devagarzim... Eu, minha preta e os passarim... De manhã cedim, sozim, penso naquela confusão toda e me sinto um pouquim mais abençoado. E ceis tão indo pra onde? Mirto Ferreira? Lilia? Hum... Conheço não... Tão vivo?”