Dionéia era linda! E bota linda nisso... Tão linda, mas tão linda que a dádiva da beleza por pouco não se exauriu quando a contemplou. Tão linda, mas tão linda que, ainda que se esgotasse vasto repertório de superlativos, não se lograria êxito em ser fiel a sua beleza. Os olhos? Vocês já viram a lindeza dos olhos de uma jaguatirica quando iluminados pelos faróis de uma pick-up, numa trilha escura qualquer do sertão mato-grossense? Os de Dionéia eram mais... Âmbar envenenado, aço incandescente, luz de labareda, mijo de égua; A boca? Lábios grossos e úmidos qual pedras imersas nas águas rasas e cristalinas de um riacho de montanha, reluzindo ao sol de uma manhã invernal; O corpo? Aos dezesseis anos tinha, a um só tempo, a leveza de uma gazela e a exuberância de uma potranca não domada. Piegas? Lírico demais? Lugares comuns? Qual... É porque vocês não conheceram Dionéia. A visão de Dionéia fazia qualquer um sentir-se inebriado de lirismo e pieguice.
Mas Dionéia era doida... Como doida? Doida-doida, doida de pedra, maluca, desvairada... E além deste, tinha Dionéia outro defeito: Uma deformação anatômica que até a sua morte só ela e Deus tinham ciência: Dionéia não tinha aquilo... Não que tenha sido sempre assim. Não foi. Quando Dionéia nasceu, lá estava a rachinha, uma fenda perfeita entre as perninhas gordas e ágeis de um bebê lindo e física e mentalmente saudável. Um anjinho que cresceu, em tamanho, formosura e alegria, fez-se menina, adolesceu, encorpou... Até que endoideceu. Daí em diante Dionéia se pôs a vagar como uma andarilha, abandonada pelos pais de quem era filha única, sem rumo, indo e voltando sempre pelo mesmo caminho, desgrenhada, suja e maltrapilha, enfeiando-se e definhando-se a ponto de os ossos perfurarem a pele encardida, até que um dia encontraram-na morta nas margens de uma lagoa, hoje conhecida como Lagoa Abençoada, porque ali, exatamente onde seu corpo foi encontrado, brota de uma fonte que nunca seca um fino fio de água absurdamente cristalina e, também – ou talvez principalmente por isso – em razão do assombro anatômico que fez dela uma santa.
Foi quando almas piedosas a preparavam para o sepultamento é que se deu o espanto: Uma aberração! Dionéia, além de doida, não tinha fenda alguma. Nada, nadinha, sequer um risco, uma cicatriz que denunciasse ter existido algum dia, ali onde deveria ter existido, aquilo que faria dela uma femeazinha.
O que aconteceu ninguém sabe contar com exatidão e assim existem muitas versões para o “Caso Dionéia”, manchete estampada na primeira página da Tribuna do Norte que publicou talvez a mais mentirosa de todas as versões, dando conta de que ela teria enlouquecido de amor não correspondido pelo falecido patrão, Juvêncio Tostelli, ex-deputado, dono da Fazenda Primavera, onde foi capataz o pai de Dionéia, e dono também da tal Tribuna.
A que o povo conta, contudo, é muito diferente. O fato é que, como todas as lendas, também a estória de Dionéia é resultado da fusão de várias versões que foram se modificando, ganhando corpo, até se consolidar, após a morte da personagem, na verdade que hoje toda a comunidade aceita e reverencia. Dizem que foi uma velha lavadeira das margens do Rio Juruena quem testemunhou o acontecido e se encarregou de plantar a primeira das versões, mas também ela, a lavadeira, desapareceu sem deixar sinal de vida e assim, hoje já não é possível confirmar a origem da estória.
Como costumava sempre fazer, também naquela manhã de domingo teria Dionéia ido até o rio, distante não mais do que um quilômetro de sua casa, lavar seus cabelos nas águas da corredeira que, segundo acreditava, de ouvir das conversas de comadres, além de embelezar ainda mais os longos fios negros de sua vasta cabeleira tinham também a propriedade de levar para o mar todos os males que pudessem a acometer. E estava Dionéia acocorada sobre uma pedra, junto a uma corredeira, vestido puxado e enrolado até o meio das coxas, quando sorrateiramente, sem que ela apercebesse, Seu Tostelli se aproximou e a agarrou, arrastando-a até um banco de areia, onde a jogou no chão e se atirou sobre ela. Durante o embate que se travou, o extraordinário se deu: Assombrado Tostelli viu o sexo de Dionéia se fechar lentamente, pouco a pouco, desde o períneo até o púbis, sem deixar sequer vestígio de sua existência, ao mesmo tempo em que em seu membro entumecido brotavam horrendas e doloridas chagas incandescentes, que se alastraram rapidamente para todo corpo, desesperando-o de tal forma que, aos berros – urros selvagens de endemoniado – atirou-se na corredeira caudalosa do rio, sendo de pronto tragado para as profundezas do inferno.
Dionéia levantou-se como se nada tivesse acontecido e, sem tino, pôs-se a vagar cantarolando uma música de rio até o dia em que Deus a levou.