terça-feira, 6 de março de 2012

Medo não, cisma...



Medo, medo... Medo assim de pavor, não tenho não senhor, mas que tenho cá comigo, lá no fundinho das carnes, nos miolos dos ossos, as minhas cismas, ah tenho, se tenho! E quem não as tem, não mesmo doutor? O senhor me escute bem, até o Sembreque, o senhor há de saber de quem estou falando, pois é, até aquele filho de negro com índia guató, criado lá pelas bandas da Salgadeira, meio bronco e forte como um jumento, até ele tem seus sustos e cuidados, se até ele e eu então, mirradinho como sou, porque não haveria de ter? Pois bem, fique então o senhor sabendo, não é medo, mas que há certas coisas que deixa a gente com os pelos duros e eriçados que nem os do porco do mato, ah isso há... Se há!

De morto não, medo nenhum. Por haveria de ter, não é mesmo? O que há de um morto fazer com um vivo se está enterradinho, enterradinho? Nada, nadinha não é mesmo? Mas é que as pessoas contam certos casos que deixam a gente com uma cisma danada. Um conta de ouvir dizer, outro afirma ter testemunhado o ocorrido e assim vai, gente direita, de confiança... Por que não havia de ser? O senhor certamente tomou ciência do caso dos enforcados, não é mesmo? Então, um caboclo, pessoa simples, vergonhosa, apareceu lá na Fazenda do Ruço tencionando trabalho. Deram-lhe emprego, cama, comida e uns cobres por semana, coisa pouca, mas o suficiente para umas pingas no Boteco do Corisco, daí o vulgo que lhe deram: Zé da Pinga. Não ficou nem dois meses e o enforcaram por conta de aproveitar da filha da Joselina, uma guriazinha loirinha, bonitinha que só, nem dez aninhos tinha. Ele jurava lágrimas que não tinha feito abusão nenhum, que Jesus Cristinho o torrasse com um raio, agorinha mesmo, se fosse capaz de tamanha crueza, que bebia, mas não era doido e nem mau... Ninguém lhe deu monta. Enforcaram-no com laço de couro e argola de prata, pendurado na aroeira da divisa.

Morreu sem derramar uma gota de sangue, morte triste, doutor. Ninguém deveria morrer sem ao menos derramar uma gota de sangue, não é mesmo doutor? Nem que fosse um dente arrancado, um cenho partido, um nariz esborrachado, morrer sem derramar sangue é morrer sem ter lutado. Morte triste é morte sem sangue, o senhor sabe, o Diabo espera por estes acovardados. Não que eu acredite Nele, não acredito, mas é assim, ao Diabo apetece os frouxos.

Dias depois, não muitos dias depois, descobriram que não foi o Zé da Pinga o malfazejo, mas outro Zé, o Zé da Toca e enforcaram também o outro Zé. O senhor sabe, nestas maçarocas de mato homem que não angaria respeito é homem de cova, homem que faz mal feito é homem matado e o Ruço sabia muito bem disso, tanto que tratou logo de condenar também o outro Zé. Enforcaram e enterraram este outro Zé com o mesmo laço, na mesma aroeira e na mesma cova do primeiro Zé, pois é... Então, arre que me dá arrepio até de só contar! Medo não, cisma. Me contaram, o senhor acredite, que os ossos do segundo Zé não paravam embaixo da terra, enterravam e eles apareciam aflorados, enterraram de novo e os ossos brotavam como arroz em várzea alagada, reenterravam e rebrotavam e assim foi até que decidiram reenterrar os ossos há mais de seis léguas da cova do Zé da Pinga e só assim se aquietaram. Na região todos dizem que os ossos eram desenterrados pelo Zé da Pinga que os renegava em sua cova, tenho ou não tenho razão de arrepiar?

Ver eu não vi, mas conto para o senhor o que me contou gente de boa fé que afirma ter testemunhado o ocorrido, então acredito, porque não haveria de acreditar? E fico com cisma danada destes mortos que desandam a desenterrar ossos...

Medo não, que medo tem quem não tem colhão.



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