quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Viagem

A seguir uma brincadeira... Algo que escrevi já há bastante tempo e que acabou reaparecendo quando eu bisbilhotava um "velho baú" (eletrônico, é bem verdade). Achei divertido, embora um tanto infantil, e resolvi postar no Blog.



Foi numa quarta... Pode também ter sido numa quinta, ou até mesmo numa sexta-feira. O fato é que, fosse o dia que fosse, o mundo corporativo, sustentado pelo capitalismo mais e mais selvagem a cada gota de gula saciada, fervilhava no meu cérebro como desde sempre. O cansaço não encontrava conforto nem no relógio folheado a ouro que há pouco me havia sido entregue, também não encontraria na lindíssima garota-de-programa (um eufemismo para prostituta, puta, piranha...) que eu deixaria a repousar lânguida, numa suíte de luxo, de um hotel luxo, da não tão luxuosa Avenida Atlântica, enquanto eu buscaria meu confortável apartamento, onde eu me atiraria sobre meu colchão de molas alemãs importadas... Já acontecera tantas vezes! Repetidas vezes. Era sempre a mesma fotografia, com apenas leves alterações no contraste, na luz, ou no enquadramento, mas sempre a mesma fotografia. Mas, não naquele dia. Não naquela quarta ou quinta-feira: O chão desapareceu, a glote fechou, sumiu o ar e o cérebro se desfez... Deu boot, pirou, foi pro saco! Com um bico fechei a porta do meu carro e o abandonei, luzes piscando, alarme sonoro a toda, no estacionamento da Firma. Tomei um táxi e, na rodoviária Novo Rio, comprei uma passagem para uma cidade do norte do Estado e de lá, de uma cidadezinha para outra até chegar a Cu-de-judas.

Aqui estou... E onde estou não existe asfalto, carros, água encanada, energia elétrica e, portanto, nenhum dos benefícios dela decorrentes: Banho quente, cerveja gelada, sorvete, rádio ou TV... Afinal, aqui é Cu-de-Judas! Mas ninguém parece sentir nenhuma falta de nada disso e eu, aos poucos, vou me sentindo... Sei lá o que! Talvez mais primitivo, mais natural, mais eu, menos personagem... Meu relógio folheado a ouro pagou algumas passagens, alguns pernoites e o que desse para comer nos botequins de rodoviárias, até aqui chegar. O paletó do terno foi abandonado em algum ônibus, ou talvez no banco de alguma praça, onde foi usado como travesseiro. Da camisa arranquei as mangas e a calça foi cortada e transformada numa espécie de bermuda. E assim me ajeitei. Moro na casa de Seu Epaminondas, Dona Juréia e seus seis filhinhos. Não de favor, não senhor, consegui trabalho na Forjaria Cu-de-judas, ajudando na fabricação de ferraduras, facas, rodas para carroças e outras peças fundamentais, em troca de moradia, comida e uns trocados que dá para comprar umas peças de marmelada, um pedaço de fumo e até para pagar uma pinguinha, de vez em quando, pra mim e pro Neguinho da Forja.

No começo cada músculo de meu corpo doía como nunca doeram nem mesmo após uma das mais prolongadas sessões na Academia Corpus, seguida de uma acirrada disputa de tênis no Tênis Rio Clube, complementadas com uma sessão de alongamento de romper a fibra mais elástica da natureza inumana. Mas agora não tanto e meus olhos já ardem menos... Já se adaptaram às intensas variações de luminosidade na forja e também à leitura sob a luz de velas ou lamparinas. As lamparinas ainda me incomodam um pouco, a fuligem impregna minhas narinas e ataca minha incurável rinite, conseqüência da intensa poluição do Rio, o que continua me chateando. Mas, estou seguro, é apenas uma questão de tempo. A felicidade e a saúde tomaram posse de Cu-de-judas e de todos aqueles que Cu-de-judas apadrinha ou vier apadrinhar. Só me chateia – às vezes, um pouquinho só – a inexistência da internet e a falta de opções para leitura... São mesmo necessárias?

Hoje é domingo. Não é um domingo qualquer, é um domingo com missa. Na casa de Seu Epaminondas e Dona Juréia o domingo amanheceu ainda no sábado: “Minondas, peia aquele frango vermeio deix’êle bem quietim qui’é pra mode a carne ficar bem maciin, pra quando o Padre chegá...”; “Jura, cê areou a bacia?”... É que o padre vinha uma vez a cada mês e se hospedava na casa de Seu Epaminondas e Dona Juréia. Era o mesmo que se Jesus Cristo em pessoa (ou em Espírito, sei lá!) viesse aqui se hospedar. Por conta da missa, a forja não operava desde o fim da sexta-feira. Eu que já havia tratado de me ajeitar, até que estava preparado para a festa: Já tinha conseguido uma calça melhorzinha e algumas bermudas usadas; duas camisas: uma para o trabalho – que varava a semana toda – e outra, de sexta – que eu usava o final de semana. Descalço... Mas quem não estava? Que festa! O padre chegou, comeu e bebeu (Café da manhã: Broa de milho, pamonha, biscoito de polvilho azedo, bolachas, queijo e requeijão, leite com canela, café com rapadura e, para digestão, chá de boldo), bateu o sino da capela, pregou (Uma batalha infindável entre o bem e o mal, a virtude e o pecado, Cristo e o Satanás em guerra e eu querendo entender quem era o mocinho e quem era o vilão em todo o imbróglio), convidou o povo para o XXI Leilão Beneficente da XXI Quermesse de Cu-de-judas (E fomos todos, cerca de cem pessoas, entre crianças e adultos, se tanto. Eu até arrematei, quando seu Epaminondas meneou a cabeça dizendo que sim, a leitoinha que ele próprio havia ofertado como prenda. Fiquei sem os trocados de duas semanas, mas também não abri mão de meu prêmio e não lhe devolvi a leitoinha), comeu e bebeu (Almoço: Frango vermelho refogado com quiabo, arroz, feijão, angu... Quando estava quase terminando, Dona Clara trouxe um lombinho que: “Era uma pena se o Padre não comesse”, goiabada com queijo e para digestão, chá de boldo), visitou o Tião-perna-seca e Dona Jesuíta-Parteira, garantiu alguns votos para a reeleição de um prefeito que ninguém de Cu-de-judas nunca viu, comeu e bebeu (Café da tarde: Leite com canela, pão de batata, café com rapadura e, para digestão, chá de boldo), despediu de uns, mochila cheia de prendas e trocados, montou no jeguinho alugado e se foi, balançando as pernas estrada poeirenta afora.

Dilce, a filha mais velha de Seu Epaminondas e Dona Juréia, cerca de dezesseis anos, parece estar interessada em mim, mesmo tendo eu mais do que o dobro de sua idade. Não a recrimino. Afinal, que opções tem? O Neguinho da Forja, cerca de vinte anos, é um bom sujeito, mas bronco como ele só; O Bola, filho do Tião Padeiro, talvez fosse a escolha mais acertada, também meio passado na idade e bastante obeso, mas sabe fazer algumas contas e até ler um pouquinho; O Zezé da Cotinha apenas em condição de extremo desespero, mirradinho, franzininho e boiolinha como ele só... E acabou. Não é tão feiinha assim a Nilce. A simplicidade, chegando a ser simplória, a candura e a inocência naturais da pouca idade, lhe emprestavam um que de graciosidade digno de nota. Melhor eu manter distância. Na secura que me encontro... Vai que eu acabo me metendo a besta?

Todos já me conhecem. Com os meus bons conhecimentos de gestão empresarial, tenho contribuído, e muito, para a melhoria da produção na Forja Cu-de-Judas: Diversificamos a linha de produtos, introduzindo a fabricação de fundidos em bronze e latão; expandimos a área de comércio, levando a marca e os produtos da FFCJ – Forjaria e Fundição Cu-de-Judas – para além das fronteiras de Cu-de-Judas; Empregamos mais dois auxiliares... Entrou mais grana!

Estão dizendo, informações quentíssimas trazidas pelo Padre Waldir, que a energia elétrica chega a Cu-de-Judas, no mais tardar, até o Natal. Só se fala nisso. Dona Juréia sonha com uma geladeira e, quem sabe, até uma TV; Seu Epaminondas com a possibilidade de expansão da FFCJ; Dilce com um secador de cabelos... E eu? Eu estou começando a ficar preocupado: Cu-de-Judas poderá deixar de ser tão cu-de-judas! Mas, enquanto isso não ocorre, de novidade mesmo, só o pedido de Dilce em casamento que o Bola fez ao Seu Epaminondas, prontamente por ele aceito (uma boca a menos?) e não rechaçado por ela. Casamento marcado (Para quando a energia chegar), Dilce, apareceu à noite no meu quarto.

A energia elétrica chegou; A TV acabou com as prosas na frente dos portões das casas; a FFRCJ – Forjarias e Fundições Reunidas Cu-de-Judas – prospera; Seu Epaminondas quer que eu amplie ainda mais a área de comércio; Dilce e Bola casaram-se e ela já está grávida (quando pode, sussurra ao meu ouvido: O neném é seu!); E eu? Bem aos poucos, vou me sentindo... Sei lá o que! Talvez um pouco menos primitivo, menos natural, menos eu, mais personagem...

Existirá uma Nova-Cu-de-Judas?

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