Ao fim de uma tarde fria de julho, enquanto a noite baixava dizimando aos poucos o que restava de visibilidade, do alpendre da sede da fazenda, ele abarcou com o olhar o cafezal novo: Uma mancha verde escuro – um verde ainda mais denso agora na quase total ausência de luz – que se alongava por sobre o que havia sido o Pasto da Frente, desde o Corguinho até a cerca da divisa com seu amigo e cunhado, Waldemar, cobrindo toda a área da estrada para cima, onde antes havia sido pastagem. No topo, a lavoura saltava a grota e entrava Campinho adentro até próximo da casa que havia sido de Laponésio, e daí escoava no sentido da casa de Zé Caetano, sempre margeando a serra, completando um desenho que cobria toda área onde antes pastava o gado falhado. Zé Caetano e Laponésio; o primeiro um negro retinto, de um negrume brilhoso de jabuticaba madura, alto, magro e muito forte, o segundo um mulatão troncudo, um pouco mais baixo, e com um largo e quase permanente sorriso que expunha uma dupla fileira de dentes perfeitos e muito alvos, eram os seus melhores camaradas, aliás, agora apenas o Zé Caetano, já que bom tempo havia decorrido desde que Laponésio foi encontrado morto – enfarto, com certeza! – numa roçada de pasto, ali mesmo, a não mais de meia légua de sua casa. Laponésio a quem ele tanto estimava e que também tanta estima lhe tinha, morreu fazendo o que gostava de fazer, trabalhando, e o encontrar daquele jeito, com os olhos já devorados pelos urubus, o marcou profundamente.
Mas hoje ele estava feliz. Ainda há pouco cavalgara entre as filas verdes de pés de café alegrando-se com o desenvolvimento da lavoura. Graças a Deus, depois de tantas dificuldades, tantos reveses, finalmente via arvorezinhas robustas, encorpando-se a olhos vistos e preparando-se para – tudo dando certo e Deus querendo! – já no próximo ano oferecer uma boa cata.
Chegar até este ponto não foi fácil, muito pelo contrário, foi tudo extremamente difícil e demasiado trabalhoso. Primeiro, conseguir o financiamento. Como ele costumava dizer: “Banco só empresta dinheiro para quem não precisa! Só empresta pra rico!”. Com crédito limitado, foi preciso empenhar gado, obter avais – coisa que muito o envergonhava – e, depois de muito mendigar com gerentes, obter do Banco do Brasil uma quantia muito menor do que a que ele demandaria e a ser liberada a conta gotas. Em seguida obter créditos para aquisição das mudas e dos insumos, visto que o dinheiro do Banco era insuficiente e gotejante. Outra dificuldade. Mas com a fama de homem honrado, obteve o que objetivava. Contudo, tudo isso atrasou o início do plantio e a seca acercou-se com as mudinhas recém-plantadas e ainda frágeis.
Salvá-las foi uma luta. A filharada em férias escolares, todos na fazenda – como ele gostava que fosse – foi toda envolvida na operação “salva lavoura”. A construção de um tanque em alumínio a ser acoplado numa carreta puxada por um trator, constituindo um improvisado e precário sistema de irrigação, quase cega um dos meninos por exposição a “luz da solda” sem óculos de proteção. Daí, dias inteiros, do amanhecer até tarde da noite, em duplas, percorrendo as ruas de café com aquela geringonça que era pilotada por um enquanto outro, com uma mangueirinha deixava fluir um mole e preguiçoso esguicho de água, pouco mais que um filete, que a terra sedenta prontamente absorvia, num esforço comparável ao de esgotar um oceano fazendo uso de um dedal, tentava aguar as mudinhas frágeis... Orações, promessas, um cruzeiro plantando no cume da serra, mas, enfim, ainda que com custos acima do esperado, as mudinhas sobreviveram até as primeiras gotas de chuvas e gora ali estavam fortes, vigorosas, prometendo, como há pouco ele avaliara, uma boa cata já no próximo ano. Quem sabe, estando o preço bom, esta cata não daria até para resgatar alguns avais?
O céu absolutamente limpo e azul durante todo o dia, agora, pouco a pouco, escurecia, enquanto o horizonte se alongava num vermelho flamejante. Sinais por demais conhecidos, maus presságios... Ainda bem que a lavoura não adentrava grotas e se geasse, no máximo, seria atingida a bordadura. De qualquer forma, uma inquietação tola comprimiu seu coração. Tirou o chapéu e com os dedos calosos alinhou os cabelos ralos. Ainda bem que a lavoura não adentrava grotas...
Ainda era madrugada, uma madrugada demasiado fria, quando ele saiu da cama, após passar a maior parte da noite em claro. Foi até o alpendre e o ar gelado queimou seu rosto. Espichou o olhar na direção da lavoura, uma fina névoa e a escuridão bloqueou sua vista... Fez menção de ir a até o curral em busca de um cavalo, mas desistiu, seria tolice. Entrou, dirigiu-se até a cozinha, acendeu o fogo no fogão a lenha e , enquanto a água não fervia, aqueceu as mãos levando-as até próximo das chamas, esfregando-as, em seguida, uma contra a outra. Passou um café ralo e cheiroso, como ele gostava. Mas o coração continuava gelado. Quando voltou ao alpendre, a luz do sol a nascer já clareava o dia e ele pode ver, através da névoa que dissipava, na grama da frente uma espessa camada de geada. Estremeceu... Quis orar, mas estava aflito demais. Deu alguns passos na direção do curral, fez meia volta e caminhou apressado, quase correndo, rumo a lavoura.
Quando o sol abriu inteiramente o dia, numa manhã ainda muito fria, o que foi verde era agora marrom. Como se um banho de chocolate, uma calda rala de chocolate tivesse sido despejada sobre a lavoura de café... Estava acabado. O dia avançava e as folhas escurecidas não deixavam dúvidas: A lavoura estava dizimada e ele literalmente quebrado.
Foi a única vez que vi meu pai chorar.
(Soube-se depois que aquela foi uma das mais intensas geadas dos últimos cinquenta anos – conhecida como “geada negra” – que dizimou lavouras inteiras de café, no Paraná, São Paulo e sul de Minas Gerais).
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colelo a intensidade do texto me fez chorar.Papai foi sem duvida um grande homem
ResponderExcluirQueridos anônimos, por favor identifiquem-se... Se não querem "logar", um nominho no final do comentário ajuda bem. hehehe
ExcluirComo não chorar...alembrar da luta renhida desse homem só pode mesmo emocionar! Mas até parece que ele continua nos dizendo:Não chores meu filho, que a vida é luta renhida. A vida é combate que o fraco abate e o forte só pode exaltar.
ResponderExcluirMas como dói!
Dói muito!
ExcluirMuito bom.
ResponderExcluirTarlei
salve vô milton! bela história. valeu, ticolelo.
ResponderExcluirThiago, Este foi um dos eventos que mais me marcou na minha juventude. Dois aspectos antogônicos em papai me marcaram muito: O abatimento inicial (não sei durantes dias, ou meses...) e a disposição para recomeçar.
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