Na roça de tempos ido, a lida era diferente. Tudo era mais difícil! E ainda que apreciada, à distância, sob o olhar saudoso e romântico, de alguém que a viveu mais como coadjuvante do que como ator principal, as dificuldades sempre afloram. Na Fazenda dos Coelhos, em Paulo Freitas, por exemplo, apenas para citar alguns, a ordenha era manual, o leite entregue em fábricas distantes, debaixo de sol ou chuva, levado no lombo de burros, ou em carroças por eles puxadas; todas as atividades agrícolas, do plantio à colheita, eram manuais e árduas; o acesso às informações difícil; as distâncias longas; as estradas péssimas... Enfim, ainda que se vislumbre certa aura de pureza naquele jeito caipira de ser, nada era fácil.
Para a exata percepção da história que a seguir narro, é necessário compreender estas dificuldades.
Começo por explicar – porque sei que a maioria não conhece – como era beneficiado o feijão: A colheita, como já foi mencionado, era manual. Arrancavam-se as ramas de feijão e formavam-se pequenos montes, mais ou menos com o mesmo espaçamento entre si, os quais, posteriormente eram carregados em carros de boi (carros puxados por bois) e transportados até os “terreirões”, onde eram deixados a secar. Após algum tempo, salvo engano meu, três ou quatro dias, dependendo do sol e de quão maduro estivesse o feijão, no momento da colheita, dava-se a separação dos grãos das vagens e ramas. Para tanto era necessário “bater” o feijão. Atividade bastante extenuante, mas bonita de se ver: Dois ou três peões, empunhando cumpridas e flexíveis varas, davam ritmadamente com as mesma sobre o feijão espalhado no terreiro, fazendo com que os grãos se desprendessem da vagem. Em seguida, era só sacudir a palha, peneirar e ensacar o feijão “beneficiado”.
Naquele ano, papai, tinha colhido muito feijão e o processo de beneficiamento, para nossa alegria, gerado muita palha, a qual foi acumulada no “terreiro de baixo”. Ali a criançada se esbaldava, deixando a imaginação correr a solta: Túneis eram escavados; bunkers (sei que nunca foram chamados assim, mas não acho outra palavra...) construídos, atacados e destruídos; cidadelas conquistadas e heróis forjados.
Uma das técnicas para destruir um bunker era simplesmente se jogar sobre ele e foi exatamente isso que Zezé, filho da Rola, em dado momento fez, no que foi, acidentalmente, aparado por uma ponta de lança – na verdade uma farpa pontiaguda de uma vara quebrada, ali colocada, a guisa de estrepe, por alguém de nós. A lança o atingiu justo no saco, rasgando-o e expondo inteiramente um dos testículos.
Um Deus nos acuda! Nosso pai nos mata... Mas, na verdade, foi ele o salvador.
Estava lá o Zezé estendido sobre a mesa da casinha de biscoito, a calça abaixada até os joelhos, olhos arregalados, mais pelo medo do que pela dor, o saquinho encolhidinho e o testículo exposto, pela primeira vez respirando o ar livre...
- Lilia – Gritou papai, tendo decidido fazer dela a enfermeira chefe e dele próprio o cirurgião – me traga agulha, álcool e uma linha forte.
Mãos desinfetadas, uma boa dose de álcool na bolsa escrotal... Aí Zezé urrou!
- Segure as pernas deste menino! – Ordenou papai.
Coube a mim. Segurei firme, mas não arrisquei um só olhar para a zona de perigo.
- Pronto. – Exclamou papai, após muitos gemidos, esperneadas e tentativas de fuga. – Amanhã pegamos o trem até Itumirim pro Doutor dar uma olhada nisso.
O Doutor examinou bem o menino: O saco muito inchado e meio roxo. Apalpou com cuidado, examinou novamente, desta vez fazendo uso de uma lupa...
- Qual foi o procedimento? – Perguntou ele.
- Desinfetei bem, com álcool, recolhi o “baguinho” e costurei – Respondeu papai.
- Linha de costura? – Perguntou o médico.
- Linha de costura... – Respondeu.
- Forte?
- Forte...
Examinou uma vez mais e dirigindo-se ao Zezé:
- Você pretende ser padre, meu menino?
Ao que Zezé, absolutamente assustado, balançou a cabeça, seguida e de forma a não deixar dúvidas, em sinal de negação.
- Muito bem. Então pode se casar e ter muitos filhos... Só vou lhe passar um antiinflamatório e tudo estará bem – Concluiu, para o nítido alívio também de nosso pai.
Nada como um clássico causo do Sô Mirto narrado por testemunha ocular e ademais memoriosa. De arrepiar, tio... Thiago.
ResponderExcluirQue interessante...na minha memória, estava gravada uma queda do abacateiro.Mas você deve saber melhor, afinal é o primogênito.
ResponderExcluirBeijos
Hoje era bem mais fácil.A gente podia grampear
ResponderExcluirBeijos
Tarlei
Pois é Thiago, lá naquela Fazenda dos Coelhos aconteciam coisas de arrepiar mesmo! Pudera, tendo como pilares Sô Mirton e Dona Lilia...
ResponderExcluirCocada, num foi queda de abacateiro não...Mas que tem um cadiquim de fantasia na historinha, isso tem.
Sacanagem, Tarlei... Só porque o saco num é o seu, né? Já pensou se os grampos enferrujam!